quinta-feira, 10 de novembro de 2011

COITEIRO DE SAIA (Crônica)

Rangel Alves da Costa

Rangel Alves da Costa

De grande relevância no contexto histórico do banditismo e do cangaceirismo nordestino, o coiteiro foi auxiliar, guardião e relações públicas do chefe valente e seu bando, expressando ao mundo exterior as pretensões bandoleiras.
Corriqueiramente, define-se o coiteiro como sendo o indivíduo que dá asilo, coito a bandidos, que os protege; é aquele que, tendo relações de confiança com um grupo, favorece ou protege os seus integrantes.
No mundo cangaceiro, coiteiro era aquele que guarnecia o bando de víveres, servia de contato com pessoas influentes, procurava se inteirar de toda situação ao redor e depois informar ao grupo sobre possíveis ameaças. Coiteiros famosos foram, por exemplo, Pedro de Cândido
e Mané Félix, na região da Gruta do Angico, onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram assassinados.
Mesmo não fazendo parte do bando, o coiteiro deveria ter a mesma coragem e sagacidade do cangaceiro. Ora, da sua astúcia muitas vezes dependia a segurança e a sorte de muitos, de suas preciosas informações todos se guarneciam debaixo do sol. E tudo isso feito às escondidas da volante, da polícia que estava sempre investigando a existência de gente defensora da laia bandoleira.
Por tudo isso é que sempre diziam que o destemor, a astúcia e o enfrentamento dos maiores perigos, não eram fatores que coubessem numa mulher, ainda que numa valente sertaneja. E se espalhava pelos quatro cantos que pra ser coiteiro tinha de ter sangue no olho, ser macho, corajoso e capaz de dar a vida para não trair os amigos.
Como se vê, mulher não tinha mesmo lugar nessa vida de coiteiro. Ao menos era o que pensavam até aparecer uma história, logo vista como fantasiosa demais, sobre uma bela sertaneja que por amor a um cangaceiro arredio do seu coração, se tornou coiteira objetivando sempre proteger seu amado. Protegendo, garantindo segurança, tinha esperança de que qualquer dia ele abandonasse aquela vida e corresse para os seus braços.
Respondia pelo nome de Miguelina esse coiteiro de saia. Moça mais bela que o amanhecer, mais sedosa que a brisa desapressada, mais encantadora que a noite de lua sertaneja a se espalhar naqueles rincões de meu Deus. De tão formosa era a mulher, que toda vez que o velho sacerdote passava pela sua janela dizia que ali enxergava uma beleza imaculada.
Mas, quanto à singeleza da mocinha, não sabia nem um terço da missa. Verdade é que no seu íntimo, quando vestia por cima da saia uma calça encourada, na cintura pra cima uma camisa de pano grosso de mangas compridas, um roló de couro cru por cima dos pés macios e um chapeu sertanejo, já de cor fogueada, por cima dos cabelos presos, ninguém dizia que ali não estava um sertanejo do mais autêntico.
Mas não, era Miguelina coiteira, moça bela transformada em mateira, em bicho do mato, cortando veredas, encostando os ouvidos na terra, avistando bem mais longe do que se podia ver e adentrando nas escuridões das moitas e labirintos. E tudo pra ver se por perto tinha macaco, tinha volante, tinha polícia no encalço do bando onde estava o seu grande amor: o cangaceiro Tiziu.
Tiziu era cangaceiro aperreado demais. Havia jurado permanecer ao lado do Capitão para o que desse e viesse, mas também com o coração sofrido todas as vezes que se lembrava da moça bela na janela. Porque os pais de Miguelina nunca aceitaram o namoro da filha com ele é que havia entrado pro bando do Capitão.
Também morrendo de amores, a mocinha se entristecia toda só de pensar na vida dele correndo tanto perigo, jogado à sorte duvidosa da vida e a qualquer hora na mira de um macaco de qualquer volante. Por isso é que assim que sabia que o bando estava por perto, acoitado nas redondezas, não fazia outra coisa senão se danar pelos cantos para ouvir rumores se a polícia também estava por perto, no encalço dos cangaceiros.
Quando acontecia de se confirmar, então ela ficava em tempo de se acabar de preocupação, temerosa demais, e assim resolvia se vestir de homem e chegar ao local onde estava o bando, e sempre se passando por coiteiro. E já estava acostumada a isso. Mais de cinco vezes já havia chegado ali e, engrossando a voz, alertado ao próprio cangaceiro maior.
Tiziu nem desconfiava que ali, revestida daquele sertanejo destemido, estava o seu grande amor. Mas no dia anterior à chacina, ocorrida na madrugada do dia 28 de julho de 38, Miguelina até que ouviu rumores que os homens da volante estavam no outro lado. Não deu tempo de ir nesse dia, mas foi a primeira a avistar a carnificina logo de manhãzinha.
Seu amor não estava entre os mortos. Tiziu passarinho sertanejo conseguiu voar, foi pra bem longe. Mas dizem que um dia voltou e numa tarde, deitado no colo dela, contou uma história de um coiteiro que jurava pensar ser ela todas as vezes que aparecia por lá. Mas nunca lhe foi contado o segredo.
Um dia ela tirou as roupas de coiteiro do velho baú e apareceu diante dele. Tiziu passarinho sertanejo quis voar novamente assustado, mas já estava preso noutra gaiola, comendo do amoroso alpiste. Custou a acreditar, mas acreditou.
Poeta e cronista
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