Rangel Alves da Costa
ROMEIRAS DO PADIM CIÇO
Bem antes de chegar novembro, que é o mês da maior romaria pras bandas das terras cearenses do Juazeiro do Norte, objetivando comemorar em louvação o dia de finados visitando o túmulo do Padre Cícero Romão Batista, ou simplesmente Padim Ciço, que é o verdadeiro santo na crença e na fé do povo nordestino, as velhas romeiras já começam a organizar sua sagrada peregrinação.
Tendo imagens do Santo Padim espalhadas pela casa, desde cedinho se benziam por todos os cantos onde estivessem diante de sua presença. Dali em diante não podiam mais se esquecer das arrumações que tinham de fazer para que não faltasse nada quando o dia da partida chegasse.
Já vinham providenciando a viagem há muito tempo. Gente sertaneja vive de antecedências, é precavida demais, pois nada pode dar errado no sonho maior da romaria. Sabem que nada se compara às visitas que farão à Colina do Horto, a Basílica Nossa Senhora das Dores, ao túmulo do Padim na Capela do Socorro, subir os degraus da estátua do Padim, jogar-se ao chão em preces e orações, pagar suas promessas, ofertar seus os ex-votos, se comover com a Missa do Chapeu na despedida, pedir proteção.
Daí que sendo uma gente já envelhecida e muito pobre, sem contas em bancos ou quantias guardadas em cofres, o que faziam era usar da criatividade para ter o dinheirinho no momento da viagem. Então colocavam um porco pra engordar, separavam um cabrito ou uma novilha no pasto, escolhiam a dedo as galinhas, capões e guinés que serviriam para venda mais tarde. Quando tudo já estava próximo então o animal era vendido e, juntando mais algumas notinhas escondidas debaixo do colchão, a partida estaria garantida.
Viagem longa, de pau de arara ou em cima de caminhonetes, tudo deveria estar realmente nos conformes, pois o desconforto era muito e o cansaço ainda maior. Só mesmo a imensa fé e religiosidade mística de um povo pra fazer com que senhoras de setenta anos ou mais se submetessem à peregrinação romeira tão dificultosa. Muitas vezes quase não andavam em casa, cheias de reumatismos ou outras doenças, mas quando se falava na romaria pro Juazeiro do Padim Ciço aparecia um vigor de dançar forró e correr.
Os preparativos para a viagem eram dos mais engraçados. Digo de cátedra porque muitos parentes, principalmente meu avô Ermerindo e minha avó Emeliana não perdiam uma só romaria. Lembro muito bem que preparavam carne assada, lombo frito, carne de caça passada na brasa, farofa de torresmo, bolo de ovos e de milho e outras iguarias. Como para um piquenique matuto, colocavam cada alimento em vasilhames plásticos, tampavam bem tampadinho e dispunham tudo num saco. Como a viagem era longa, nos pontos determinados mandavam parar o veículo para a festa da barriga.
Contudo, há de se ver que esse alimento todo não era só na medida da viagem não, pois deveria dar para o consumo nos dias em que estivessem arranchados na cidade santa. Por isso mesmo também levavam redes de armar, esteiras e até colchões enrolados. Havendo lá uma casinha já alugada com antecedência de mais de mês, senão corriam o risco de ficar debaixo dos pés de paus ou ao relento mais duro, bastava derrear a bagagem e sem entregarem aos ofícios de devoção.
Mas devoção era só uma parte. A religiosidade mística daquele povo era extremada, porém não era tudo, pois ao lado desse devocionamento todo sobrava um espaçinho para o comércio, para a compra de bugigangas, de novidades de todo tipo, de presentes para os sertanejos que não puderam viajar daquela vez. Daí se encherem de rapaduras, litros e mais litros de uma água benta “batizada”, fitinhas, imagens sacras e principalmente esculturas do grande Padim de todos os tamanhos.
Como muitas daquelas velhas senhoras já haviam experimentado o desprazer de ter suas bolsas roubadas noutras romarias, então inventaram um meio mais que seguro de se guardar todo o dinheiro juntado com sacrifício e que levavam. Mas era uma invenção danada de diferente, trabalhosa, coisa de estilista matuto e pensando em tudo na sua criação. Eis que inventaram de costurar um bolso de zíper por dentro da saia. Assim, quando era feita uma compra e precisava buscar o dinheiro, era só folgar um pouco a saia, colocar a mão e pegar lá a quantia.
O problema é que tinha velha que nem se preocupava em buscar o dinheiro por cima, preferindo maior rapidez no negócio. Então levantava s saia até a cintura e abria o zíper do bolsinho com segurança. Logicamente que para fazer isso tinha de estar vestida com anágua e outros panos por baixo. Só que, pela idade, nem todas lembravam esse detalhe.
E vestidas apenas de saia, sem nada que encobrisse as vergonhas, sem nenhum pudor levantavam os panos tranquilamente. E não havia dinheiro que pagasse aquela visão. E prontamente as pessoas se benziam diante do que viam e elas, sem imaginar nas consequencias do inusitado, se benziam de volta e diziam o quanto era bom estar num meio de um povo tão religioso.
Poeta e cronista
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