segunda-feira, 19 de setembro de 2011

FOGO DA MARANDUBA

Por Alcino Alves Costa

Parte II 

As volantes unificadas seguem para Sergipe. O povoado ribeirinho de Cajueiro é o primeiro a ser visitado. Lá e em seus arredores vive uma leva muito grande de perigosos coiteiros: os Félix, os Rosas, os vaqueiros de Antônio Caixeiro e os da Badia. 
Toda essa gente sabia do roteiro de Lampião e seu bando. Era uma verdade. Naquelas paragens da beira do lendário rio sertanejo, o grande bandoleiro se considerava em sua própria casa. Mesmo assim, naquela passagem não iria se demorar. Sabia que seria tenazmente perseguido e apesar dos insistentes pedidos de seus comandados que desejavam realizar um baile, na fazenda Santa Cruz não se demorou. Apressado, se embrenhou na mataria. 

A volante vinha célere em seus pisos.
Surge, então, um grave obstáculo no meio da tropa. Sério inconveniente que, como adiante se verá, se tornou em uma total e absoluta tragédia.

Quais os problemas surgidos?
Os homens de Pernambuco, veteranos das caatingas, achavam que possuíam uma ascendência muito grande sobre os da Bahia. Estes, na verdade, inexperientes e sem o traquejo dos pernambucanos, eram, como aqueles, valentes ao extremo. Todos eles acostumados com o mundo bravio dos sertões, uma vez que também eram filhos daquelas terras de sofrimento. Orgulhosos, não aceitavam as provocações e nem os “dixotes” dos do sertão do Pajeú.

As desavenças aumentaram. O nunca esperado aconteceu. Os comandantes das volantes tomaram posição, cada um em favor de seus comandados. A soberbia do vesgo de Nazaré criava, ainda mais, em Liberato e seus comandados reações que estavam beirando ao desprezo e ao ódio. Se o nazareno queria porque queria demonstrar ser ele e os seus os maiores, os melhores, os realmente valentes; o irmão de João Maria não fazia por menos; asseverava alto e bom som, que sua volante era a que possuía os homens mais valentes do Brasil e do mundo. A porfia se tornou tão severa que não se pensava mais em Lampião, o empenho agora consistia em quem era quem na caça ao lendário bandoleiro.

O despeito e a vaidade dos dois comandantes foram à causa da perdição dessa numerosa tropa.

Os perseguidores já ultrapassaram os difíceis carrascos das serras do São Francisco. Agora caminham pelas terras brancas de Poço Redondo. Passam pelas lagoas da Pedra e do Curral. A tarde descamba. O sol vai se escondendo no horizonte. A caterva se destina a fazenda de China, o Recurso.
 
Lampião e seu bando estão nos arredores da Queimada Grande de Piduca Alexandre, um dos irmãos do comandante baiano que está no encalço da malta bandoleira.
A jornada está sendo muito forte. Cada componente de uma das volantes não quer, sob pretexto algum, demonstrar fraqueza ou cansaço. Na verdade, o esforço que estão fazendo está deixando a maioria dos soldados completamente sem forças e extenuados.

A sede, a fome e o sol escaldante deixam todos relegados a verdadeiros trapos humanos. E era este inesperado fator a grande vantagem dos bandoleiros perseguidos.

O sertão está encoberto pelo manto escuro da noite.

Os enfraquecidos e combalidos “macacos” já estão desanimados. Formam pequenos e separados grupos, uns bem distantes dos outros.

A noite chega e chega com uma escuridão de azeviche. Impossível alguém conseguir caminhar em hora tão imprópria.

Mas, os obstinados comandantes não param. Desprezando todas as normas militares, dominados pelo orgulho, prepotência e empáfia, são impedidos de raciocinar corretamente. Imperdoável atitude que arruinou as volantes, jogando seus componentes numa das maiores tragédias da campanha cangaceira, com muitos feridos e outros mortos.

A ordem era mostrar força e coragem, nunca sinais de fraqueza.

A noite deixa todos sem saber para que lado seguir. Escutam o tilintar de chocalhos. Conhecem profundamente as coisas sertanejas. Sabem que as campainhas estão no pescoço da “miunça” (cabras ou ovelhas) de alguma fazenda próxima. Caminham na direção dos guizos. Sabiam que se espantassem as criações, elas correriam para o chiqueiro da propriedade que pertenciam.

Assim foi feito.

Tangidos pelos soldados os animais correm para a fazenda. A tropa se orienta pelo tilintar das sinetas. Horas depois desponta numa grande malhada. Estavam na afamada Queimada Grande.

Os perseguidores estão vencidos pela sede e pela fome. Cansados e estropiados procuram o tão almejado e merecido descanso. Estão morrendo de sede. Saciar a feroz sede e a terrível fome que está destroçando os soldados é a principal e urgente prioridade dos comandantes.
 
A água disponível é muito pouca. O vaqueiro e seus filhos se apressam em ir apanhá-la nas pias ali próximas. Potes e cabaças transportam o precioso liquido. A água é pouca. A soldadesca está morrendo de sede.
O velho vaqueiro é pai de Zé Joaquim, o rapaz que anos depois foi barbaramente assassinado pelo perverso Juriti.
Antônio Joaquim oferece seus préstimos aos soldados, mas pouco conversa. Cumpre suas obrigações para com os militares sem, no entanto, demonstrar a menor alegria.

Já é madrugada e ainda continua chegando “macaco”. Um grupo confirmou que na Lagoa do Vestido e na Lagoa do Cocho ficaram vários companheiros arreados, por não suportarem a sede. Providências teriam que ser tomadas para acabar com o tormento dos companheiros.

Os soldados são da Bahia, seu comandante ordena que João Pintadinho e seu irmão Martim sigam imediatamente, acompanhados de um dos filhos de Antônio Joaquim (Manoel) e levem água para os sedentos.

O que a tropa não havia percebido era que a sisudez do vaqueiro tinha um motivo altamente justificável; Lampião e sua malta haviam deixado a fazenda naquela tardinha e, com toda certeza, estavam pernoitando pelas redondezas. 

Levado por um misterioso pressentimento, Lampião, em vez de pernoitar na grande fazenda de Piduca, que seria a opção coerente e certa, prefere viajar um pouco mais e ir dormir na fazenda Santo Antônio, há uma légua acima da Queimada Grande.

À noite a “força” chega à fazenda do homem da Serra Negra.

O combate será iminente. Soldado e bandido estão praticamente juntos. 

O relacionamento entre as volantes continua lastimável. Os dois comandantes, em vez de procurar acabar com o problema, deixam de lado os seus deveres e responsabilidades, desprezando a condição de chefes daqueles servidores da lei e da ordem; para, ainda mais, através de suas desmedidas vaidades, aumentarem a animosidade existente entre seus homens, esquecendo que aquela dura missão que lhes fora confiada tinha como especial finalidade o extermínio do flagelo, da peste que destruía tudo, o cangaço. 

A porfia dos pernambucanos com os baianos havia se tornado num perigoso e grave problema. As volantes eram compostas de homens geniosos e soberbos. Todos, encaprichados, não queriam “dar o braço a torcer”, não permitindo que um se mostrasse mais valente, mais forte, ou ainda, mais capaz do que o outro.

A vaidade, o capricho e a soberbia foram alguns dos maiores males da gente sertaneja.

Naquela mesma noite, mesmo com seus homens cansados e estropiados, Mané Neto, querendo se mostrar o homem de ferro, de sem igual resistência, que tanto alardeava, fez questão que seus comandados seguissem em frente, sem considerar a dramática situação que todos se encontravam. A ordem do militar de Pernambuco era uma afronta, um acinte a dignidade humana; seus comandados e os da Bahia estavam estropiados, esfolados e cansados da penosa caminhada. A noite é avançada. Por que seguir mais além?

A ordem teve que ser comprida. A tropa nazarena seguiu em frente, foram dormir na fazenda Poço do Mulungu. Bem perto, menos de meia légua, do local onde Lampião e seu bando dormiam.

Cedinho, ainda madrugada, os baianos despertam e viajam. Com eles à vontade de alcançar os pernambucanos ainda pela manhã.

Os baianos estão animados, alegres e descontraídos. À noite de descanso havia ajudado bastante. João Batista, zombando de Mané Neto, imita o seu caminhar desmantelado, defeito adquirido desde o combate da Serra Grande quando saiu baleado nas pernas.

No Poço do Mulungu as volantes voltam a ficar juntas. Experientes, começam a sentir um clima de combate. Algo estranho, misterioso e diferente paira no ar. Todos se voltam para os perigos de um tiroteio. A iminente batalha forma uma cadeia de união que até então faltava entre eles. Só agora percebem que estão expostos e sujeitos aos mesmos perigos. A qualquer instante estarão enfrentando a cangaceirada, razão mais do que suficiente para que se unam e se preparem para a terrível luta que os espera.

Ainda cedo chegam ao Santo Antônio. É o local aonde a cabroeira dormiu.

Madrugadores, os cangaceiros haviam se retirado. Deixam uma verdadeira rodagem. Não se preocupam em esconder a trilha. Não se tem mais dúvida, o tiroteio será sem tardança.

Apesar do descanso da noite a soldadesca ainda sofre com os rigores da fortíssima caminhada que estava encetando. Um grande número de soldados, principalmente os da Bahia, está destroçado, sem nenhuma condição física. Muitos deles já haviam atingido o limite máximo de suas resistências, estavam enfraquecidos e combalidos, por conseguinte não tinham condições de acompanhar o ritmo avassalador dos nazarenos que, doidos para se confrontarem com o grande inimigo, se distanciavam cada vez mais dos baianos.

Liberato percebe que seus comandados não estão suportando aquela duríssima jornada e, preocupado, ver seus soldados dispersos e muito afastados uns dos outros. Procurou agrupá-los; porém, temendo a reação de seu colega que bem poderia imaginar que tudo não passava de uma manobra para não enfrentar o rei dos cangaceiros, resolveu silenciar e deixar tudo correr conforme o momento se apresentasse. Jamais daria lugar para o nazareno pensar que ele e os seus teriam medo de enfrentar os facinorosos comandados pelo capitão do cangaço.

A trilha é fácil, muito clara. Os bandidos caminham na direção dos cerrados de cipó de leite da Maranduba, braba caatinga de Poço Redondo.

Os “fechados” da Maranduba eram, e ainda são, uns dos mais falados daquela região sertaneja de Sergipe. Mataria grossa: o cipó de leite, o bom nome, o angico, a aroeira, a braúna, a barriguda, a umburana, a quixabeira e o umbuzeiro fazem daqueles desertos, moradia do gato, da ema, do caititu, do tatu-bola e do peba. Baixadas e grotões onde só vaqueiros campeões corriam atrás de bois; corredores famosos como os Soares, o maioral Milinho; João Preto, os Teobaldo, os da Cuiabá e os de João Maria: Adolfo e Manezinho Cego, o famoso Manezinho de Rosara.

Bem próximo, naquele emaranhado quase que intransponível de caatinga, está o coito de Lampião. É naquele local que as mulheres cangaceiras esperam seus homens que retornam de mais uma de suas costumeiras razias.

Os soldados vão chegando.

Chegam numas pias. Espantados, vêem pingos d’água que caem da madeira que cobre a fonte de pedras. À hora havia chegado. Os bandidos estavam nos arredores acoitados.

Ao redor do lajedo apenas uns quinze homens das volantes. O grosso da tropa está atrasado. Alguns soldados estão na casa velha da Maranduba e outros ainda nem lá chegaram. Mané Neto, louco por uma desforra, resolve não esperar os retardatários, segue em frente, sabe que os homens de Lampião estão bem próximos, ali naquela mataria.

No entanto, não sabe o valente militar que a natureza havia presenteado aquela parte da caatinga com um extraordinário anel, formado por um maravilhoso circulo. Sete umbuzeiros circundam belamente as pias. É uma paisagem de raríssima beleza. É nesse anel modelado por sete umbuzeiros que Lampião se refugia com sua cabroeira. 

Havia chegado naquele mesmo instante. Coisa pra menos de meia hora. Demorara-se um pouco nas pias e agora espalhava seus homens pelas sombras dos umbuzeiros.

A alegria é geral. Abraços e vivas faz a felicidade de todos. Os bandidos formam uma só família. Vivem irmanados pela dor e pelo sofrimento.

Continua na próxima edição e última: ParteIII

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