Errar é humano, perdoar é divino. Alguém pode imaginar que Saddam Hussein, o açougueiro de Bagdá, mergulhado até o pescoço no sangue de suas incontáveis vítimas, iria adotar como norma de conduta essa máxima cristã? É inacreditável, mas alguém achou que, em se tratando de um caso de família, o ditador iraquiano poderia deixar passar uma traição.
Hussein Kamel genro e primo de segundo grau do ditador do Iraque Saddan Hussein
Os irmãos Hussein Kamel Hassan e Saddam Kamel, figurões de alto coturno do regime de Bagdá, fugiram para o exílio na Jordânia há seis meses, levando consigo os segredos mais preciosos do país - e suas esposas Raghad e Rana, filhas de Saddam. Arrependeram-se da fuga e, na terça-feira passada, voltaram ao Iraque, devidamente perdoados pelo sogro. Três dias depois, os genros pródigos estavam mortos. Na sexta-feira 22, a televisão iraquiana anunciou que Kamel e Hussein, juntamente com seu pai e outro dos irmãos, foram assassinados na casa onde moravam, em Bagdá, por membros de seu próprio clã de Al-Majid. Depois de dar a notícia, o locutor leu um telegrama enviado a Saddam pela família Al-Majid no qual pede "clemência" pela chacina e a justifica pela necessidade de limpar a honra do clã. Seguiram-se o hino nacional e os rotineiros elogios às autoridades.
Esposa e Saddan Kamel
O fim trágico dos genros desertores não chega a ser surpreendente. O que não se esperava é que Saddam Hussein agisse tão depressa para eliminá-los. Foi o próprio Hussein Kamel quem anunciou o regresso, na segunda-feira 19. No dia seguinte, os dois casais e os netos do ditador cruzaram os 1 000 quilômetros de deserto entre Amã e Bagdá num comboio de limusines. Na chegada, um porta-voz do governo de Bagdá informou que o pedido dos irmãos Kamel tinha sido aprovado por uma sessão conjunta do Comando Revolucionário Iraquiano e do partido governista Baath. "A marcha do grande Iraque é maior que todas as falsas aspirações e maior que os traidores e que aqueles que cometem erros", acrescentou o porta-voz, numa nota recheada de duplos e triplos sentidos.
Entre os observadores, a reação ao regresso foi de surpresa. Não faltou quem interpretasse a história inteira como mais uma das tramoias maquiavélicas de Saddam. Outros previam, cinicamente, que em poucos meses um dos irmãos - ou, de preferência, ambos - perderia a vida num "acidente" automobilístico. O sogro vingador não teve esse requinte, nem estava disposto a esperar. Na tarde de sexta-feira, um anúncio da agência oficial INA dissipou as eventuais dúvidas sobre o destino reservado aos fujões. As filhas de Saddam, informou a INA, decidiram divorciar-se de seus maridos, porque "não queriam mais permanecer casadas com traidores". A notícia do divórcio era a sentença de morte. Horas depois, a fatura estava liquidada.
O HOMEM DAS ARMAS - O motivo da fuga das duas famílias para a Jordânia é bastante conhecido: a luta feroz no interior do clã de Saddam Hussein pela partilha do butim amealhado depois da Guerra do Golfo, em 1991. O embargo decretado pelas Nações Unidas contra o Iraque permitiu à corriola do ditador multiplicar sua fortuna explorando o mercado negro. O bloqueio comercial jogou a maioria dos iraquianos na miséria, mas os donos do poder construíram cinqüenta novos palácios ou mansões luxuosas. Um complexo residencial no Lago Tharthar é 50% maior que o Palácio de Versalhes, na França. Um dos irmãos de Saddam Hussein, Barzan Ibrahim Al-Tikriti, foi enviado à Suíça para cuidar das contas secretas da família. Tanta riqueza só poderia dar briga. Na mesma noite em que os irmãos Kamel partiram para o exílio, 7 de agosto do ano passado, o filho mais velho do ditador, Uday, baleou o meio-irmão de Saddam, general Watban Ibrahim Al-Tikriti, durante uma festa em família. Uday era inimigo de Hussein Kamel, de quem retirou o controle dos negócios no mercado negro.
Já a decisão de voltar ao Iraque, seis meses depois, é bem mais difícil de entender. A fuga espetacular dos genros, recebidos de braços abertos pelo rei Hussein, da Jordânia, foi saudada em toda parte como um golpe devastador para Saddam Hussein, cuja queda, acreditou-se, era iminente. O general Hussein Kamel era o responsável pelos programas militares secretos do Iraque, o que incluía as proibidas armas químicas e os planos para a construção da bomba atômica. Como comandante das tropas de elite do ditador, a Guarda Republicana, chefiou pessoalmente o massacre das comunidades xiitas que iniciaram uma rebelião após a derrota iraquiana na Guerra do Golfo.
Seu irmão era chefe da guarda presidencial. Preocupado com a fuga, Saddam Hussein enviou a Amã seu filho Uday, que pediu ao rei Hussein para extraditá-los. A resposta foi um humilhante não. Enquanto isso, os irmãos desertores passavam dias inteiros reunidos com agentes da CIA, enviados às pressas dos Estados Unidos para Amã, e com os inspetores da ONU encarregados de fiscalizar o cumprimento das promessas do Iraque de destruir seus estoques de armas sofisticadas. O que eles disseram é segredo até hoje. O fato é que, nas semanas posteriores, o governo do Iraque entregou à ONU informações preciosas - que até então vinha negando.
EXÍLIO SOLITÁRIO - Os dois genros pretendiam assumir a liderança da oposição iraquiana, para retornar ao país por cima da carne-seca depois da queda do regime. Em pouco tempo os EUA perceberam que o general Kamel não era o homem adequado para liderar a oposição no exílio. Guardadas as devidas proporções, isso seria o mesmo que, no Brasil dos militares, o general Sylvio Frota fugir para Paris, filiar-se ao MDB e lançar uma campanha pelas liberdades democráticas. Nos meses que se seguiram, Saddam Hussein assimilou bem o golpe - e até se fortaleceu, ao ganhar mais um mandato de presidente numa farsa eleitoral testemunhada por pencas de jornalistas estrangeiros.
Os grupos dissidentes iraquianos não quiseram conversa com o general fujão, a quem consideravam um bandido da mesma laia do ditador. Os fugitivos passaram os seis meses na Jordânia isolados num palácio, ignorados pelo Ocidente e hostilizados até pelo anfitrião, o rei Hussein, que recentemente permitiu que um grupo de oposição iraquiano rival de Hussein Kamel abrisse um escritório em Amã. Esses contratempos tornaram o exílio cada vez mais desconfortável. Mas não explicam a fatídica opção pelo regresso. Parentesco, na corte de Saddam, não quer dizer muita coisa - e os dois genros sabiam disso perfeitamente. O ditador já sumiu com vários primos e, segundo se comenta, alguns meio-irmãos. "Kamel caiu numa armadilha", afirmou um dissidente iraquiano em Londres. É uma explicação razoável. Falta esclarecer o que o teria convencido a confiar no sogro. Outra hipótese foi aventada por um assessor de Hussein Kamel que, prudentemente, preferiu ficar na Jordânia. "Ele estava mentalmente perturbado", revelou. É uma explicação mais simples. E mais convincente.
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