Zé do
Telhado, titular da Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito,
permanece no imaginário popular como um assaltante que roubava aos ricos para
dar aos pobres. O mito e as lendas têm servido para ocultar um processo
judicial feito de mentiras e provas forjadas.
Na campa,
onde jaz, consta uma data de nascimento igualmente falsa. As quadrilhas
integravam padres, morgados, administradores, empresários e alfaiates. Nunca
foram julgados. A História reconduz-nos a julgamentos recentes, alguns dos
quais da actualidade...
Na noite de
16 para 17 de Março de 1857, Zé do Telhado é já alvo de uma caça ao homem sem
precedentes. Tinha renovado a quadrilha, agora constituída por Zé do Telhado
e o irmão Joaquim, António da Cunha, o Silva mestre pedreiro, a senhora
Tomásia, Joaquim Pinto e a mulher, donos de uma estalagem , o Morgado António
Faria, o padre Torquato José Coelho Magalhães, o alfaiate Miguel Exposto, o
Morgado da Magantinha(António Ribeiro de Faria) e o administrador Albino
Leite.
Zé do
Telhado resolve pernoitar em Amarante, cujo administrador, José Guedes
Cardoso da Mota, fora avisado que o fugitivo passaria a noite na casa de
Manuel Teixeira, do Sardoal.
Cabos de
ordens, tropas de caçadores e regedores das freguesias são mobilizados em
peso para a captura, cujo comando fora confiado ao regedor Alves, de São
Gonçalo.
Cercaram a
casa durante a noite. Mal irrompessem os primeiros raios de sol, por
imposição legal, o assalto e as prisões consumar-se-iam. A mulher do dono da
casa, quase de madrugada, apercebeu-se do cerco e tentou alertar Zé do
Telhado, entretanto ocupado a cuidar do visual.
Nas
situações mais dramáticas, o homem cofiava a barba hirsuta, ajeitava o
paletó, empertigava a peitaça frente ao espelho.
Dirigiu-se a
uma janela e interpelou um dos cabos. ”Quem anda aí? – as palavras de Zé
do Telhado rasgaram a noite gelada. A resposta chegou e trazia mau augúrio:
”É o regedor da freguesia. Por ora não queremos nada, o que queremos será
mais logo”. O foragido dirige-se para o lado oposto da casa e abre outra
janela. ”Tu, que estás detrás do carvalho, sai!.. senão morres!”
Ao grito da
última palavra, colou-se um tiro que aterrorizou a patroa. “Entregue-se,
senhor, que eles não lhe fazem mal” – ajoelhou-se a mulher. Zé do
Telhado nem ouviu. Ao nascer do dia, para surpresa geral, abre a porta de
casa e aparece de peito feito. Desce os degraus e simula que se vai entregar.
Em tropel, a tropa lança-se sobre a criatura. O gesto é fulgurante - recua,
entra de novo em casa, bate com a porta, foge pelas traseiras, galgando um
monte.
Os sitiantes
seguiram-lhe no encalço. Sentindo-se perseguido, desfechou um tiro. Depois,
outro. Estava morto o regedor Alves, comandante do pelotão destroçado.
A verdade
histórica confronta-se, hoje, com as versões oficiais e a lenda de José
Teixeira da Silva, nascido em 1818 no lugar do Telhado, freguesia de
Castelões de Recezinhos, concelho de Penafiel.
Aos 14 anos,
o garoto muda de ares e vai residir para casa do tio João Diogo, no lugar de
Sobreira, freguesia de Caíde de Rei, concelho de Lousada. Castrador e
tratador de animais, acolhe o sobrinho, interessado em aprender o ofício.
Diogo tinha vida abastada e deu abrigo a José Teixeira da Silva durante cinco
anos.
Agosto
quente, festa da Senhora da Aparecida, 13 de Agosto, dia de folguedo geral no
lugar. José Teixeira descobre o aceno de um lenço branco por detrás de uma
janela, na casa onde morava.
Ana Lentina,
a prima, faltara ao festim. Afogueado, o moço galga o portão e corre para os
braços da prima. Um beijo subtil e cinco palavras de amor selaram uma paixão
que acabaria em casamento e tragédia. Tinha 19 anos.
Pouco
depois, assenta praça no quartel de Cavalaria 2, os “Lanceiros da Rainha”.
Corria o mês de Julho de 1837. Rebenta a “Revolta dos Marechais”, contra o
partido dos setembristas e pela restauração da “Carta Constitucional”. Os
lanceiros alinham com os revoltosos, desbaratados a 18 de Setembro.
O general
Schwalback, líder da insurreição, foge para Espanha e leva José Teixeira, que
se distinguira em combate. A caminho do exílio, o intrépido recebe a notícia
de que o tio, finalmente, abençoara o seu casamento com Ana.
Regressado
com um perdão a Portugal, troca alianças a 3 de Fevereiro de 1845. A 7 de
Novembro, nasce a primeira filha do casal – Maria Josefa.
Grassava no
país uma revolta larvar contra o governo de Costa Cabral. O povo, ajoujado a
impostos e arbítrios, aproveita a publicação da “Lei de Saúde Pública”- que
proíbe os funerais nas igrejas e impõe aos cadáveres um exame por mandatários
do governo, em detrimento dos cirurgiões locais – e amotina-se por todo o
Minho contra as “papeletas da ladroeira”.
Estala a 23
de Março a “Revolução da Maria da Fonte”, liderada por mulheres. As quatro
cabecilhas da revolta são presas dois dias depois, mas o rastilho espalha-se
a Trás-os-Montes.
Há soldados
que desertam para o lado dos insurretos. Chaves adere, depois Póvoa de
Lanhoso, Vila Real, Guimarães. Centenas de revoltosas são presas pelos
soldados e libertadas por companheiras.
José
Teixeira foi o líder militar da insurreição, à qual aderiram pés descalços e
o General-Visconde de Sá da Bandeira, às ordens de quem fica o sargento
Silva. Logo se distingue na expedição a Valpaços.
Os actos de
bravura, despojamento, apurado instinto militar, num combate que perdeu,
valeram-lhe a mais alta condecoração que ainda hoje vigora em Portugal: a
” Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito”.
O pior viria
depois.
Derrotado,
aconchega a condecoração, tira as divisas de sargento e voa como um pássaro
para os braços da mulher e dos cinco filhos. Os vencedores atacaram a
canalha. José Teixeira é perseguido, atola-se em dívidas por impostos que não
consegue pagar e é expulso das Forças Armadas.
Não há quem
lhe dê ofício, a todas as portas bateu – todas se lhe fecharam.
Assim nasce
o Zé do Telhado que faria lenda.
Nesse tempo,
Custódio, o “Boca Negra”, capitaneava a maior quadrilha de bandoleiros que
aterrorizou as duas beiras em 1842. Conhecia, de gingeira,as façanhas
militares de José Teixeira.
Ferido num
dos assaltos, “Boca Negra” leva Teixeira a um casario meio abandonado onde se
acoitava o bando. Apresentam-se à luz da vela - o “Tira-Vidas”, “O Girafa”, o
“Sancho Pacato” o “Veterano” e o “Zé Pequeno”. Para o assalto do dia
seguinte, “Boca Negra”, o líder ferido, informa a quadrilha que José Teixeira
o substituiria no comando.
A bola de
neve cresceu, imparável.
Zé do
Telhado faz e reorganiza quadrilhas, ganha fama de generoso e audaz pelas
vítimas que escolhe para os assaltos e o destino do dinheiro ou das jóias –
os desgraçados com que se cruzava e, antes de tudo, a “ minha rica
mulher e os queridos filhinhos”,como os viria a chamar, mais tarde, ao
companheiro de prisão Camilo Castelo Branco.
A fama do
bandoleiro atravessa o país. O temido Zé do Telhado emite, aos que estimava,
um salvo conduto com a sua assinatura e esta informação:
” O portador
deste salvo-conduto pode passar livremente e mando que o ajudem quando for
preciso”.
Com as
autoridades no seu encalço por todo o país, mil vezes o cercaram, mil vezes
se escapuliu o tenebroso. Vendo-se perdido, decide fugir para o Brasil.
Escondeu-se na barca “Oliveira”, acostada no Porto, onde lhe dera guarida nos
últimos três dias Ana Vitória, uma das suas vítimas que passou a idolatrá-lo
e sobre quem disse haver pessoas “de bem que nunca deram às classes humildes
um centésimo do que lhes deu Zé do Telhado.” Desarmado e a horas de
zarpar, Zé do Telhado é preso no esconderijo, a 5 de Abril de 1861.
Às dez da
manhã do dia 25 de Abril, começa no tribunal de Marco de Canaveses o
julgamento de José Teixeira da Silva.
No dia 27,
às duas da madrugada, o júri, presidido pelo juíz António Pereira Ferraz,
considerou Zé do Telhado culpado da prática de doze crimes. Roubos, um
homicídio, organização de quadrilha de assaltantes e a tentativa de evasão
sem passaporte.
“Condeno o
réu José Teixeira da Silva da freguesia de Caíde de Rei, comarca de Lousada,
na pena de trabalhos públicos por toda a vida na Costa Ocidental de África e
no pagamento de custas” – assim determinou o tribunal.
O
julgamento, sabe-se hoje, foi uma farsa. Uma consulta, ainda que superficial,
a todos os documentos oficiais que constam no Tribunal da Relação do Porto e
no Arquivo Distrital do Porto não deixam qualquer margem para dúvidas.
Alguns dos
membros das quadrilhas chefiadas por Zé do Telhado foram arroladas pela
acusação e safaram-se. Morgados, padres, administradores e regedores que
tinham cometido os mesmos crimes do réu nunca seriam acusados ou perseguidos.
Várias
testemunhas de acusação nada viram, de tudo souberam por terem ouvido.
Consta do
processo que António Ribeiro, pedreiro, ”ouviu dizer que fora o querelado
José do Telhado a roubar”. Alexandre Nogueira, comerciante, “não sabe que
armas feriram o regedor se as do querelado se as dos sitiantes”. António da
Silva, lavrador, “soube pelo ouvir dizer do padre roubado que o Zé do Telhado
fora um dos que penetrara dentro da casa armado e isto tem ouvido ao povo”. Manuel
de Sousa, lavrador, disse que “ sabe por ser bem público que tivera lugar o
roubo de que se trata no dia pela forma que nos autos se declara”. Timóteo
José de Magalhães, lavrador, “ disse que sabe pelo ter ouvido ao povo que
tivera lugar o roubo de que se fala nos autos”. Francisco Moreira da Cunha,
lavrador, “ouviu dizer e ser público e notório que o réu José Teixeira e o
irmão estavam para embarcar para o Brasil”.
Só um tiro
sairia pela culatra à acusação. Francisco António de Carvalho, lavrador, afirmou
que “ o Zé do Telhado pagava crimes que não tinha cometido e ouviu dizer
que se havia combinado com o administrador do concelho para imputar os dois
crimes de roubo ao Zé do Telhado”.
Os
quadrilheiros nobres evadiram-se para o Brasil, como sucedeu com o padre
Torcato, ou colaboraram com a acusação, a troco da ilibação. O historiador
Campos Monteiro analisou os autos e emitiu um parecer a este respeito:
“ É de crer
que nesta altura se movimentassem altas influências tendentes a ilibar estas
parelhas de bandidos engravatados. O facto é que saíram em liberdade. E é
natural que o administrador, ao mesmo tempo que os inocentava, procurasse
aproveitá-los ”.
O caso da
ilibação do Morgado da Magantinha está igualmente documentado nos autos. Após
a fuga do padre Torcato, a acusação subornou a testemunha António Eliziário
que, perante o juíz, afirmou saber que “Margantinha foi um dia convidado pelo
padre Torcato a ir ter à capela de Santa Águeda e, indo ali, o encontrou com
alguns membros da quadrilha e quatro bois roubados”, pedindo-lhe “ o
padre que tomasse conta dos bois para os vender, mas o Margantinha
recusou-se”.
A verdadeira
história do mito Zé do Telhado está mal contada, a começar pela data de
nascimento que lhe é atribuída – na campa aparece 1815, em vez de 1818 – e
culminando no julgamento relâmpago que durou menos de dois dias úteis.
Foram
subtraídas testemunhas indispensáveis, promovidas declarações falsas e
adulterados os critérios de escolha dos jurados. Em vez do sorteio, foram
escolhidos a dedo conhecidos inimigos de Zé do Telhado. Condenado ao degredo,
José Teixeira da Silva desembarcou em Luanda, seguindo para Malange, onde
viveu cerca de um ano.
Palmilhou
cada légua das terras da Lunda.
Fez-se
negociante de borracha, cera e marfim.
Casou-se com
uma angolana, Conceição, de quem teve três filhos. Cresceu-lhe a barba, até
ao umbigo.
Era, para os
angolanos, o “quimuêzo” – homem de barbas grandes.
Viveu
desafogado, financeiramente. As saudades da mulher e dos cinco filhos
levaram-no mais cedo.
Morreu,
moído de remorsos, aos 57 anos.
Sepultado na
aldeia de Xissa, a meia centena de quilómetros de Malange, os negros
ergueram-lhe um mausoléu.
Hoje,
fazem-se romagens à campa do mito.
Os anciãos
de Malange dizem que, embora fosse um homem austero, tinha um grande coração
e nunca deixava cair um pobre.
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