Pernambuco= Ano 1940
Cotia não queria cometer o mesmo erro de Lampião. Não podia confiar em coiteiro. E a pergunta de Mosquito era impertinente. Ele começava a se desgostar do homem, da falta de respeito e do jeito atrevido. Mosquito era um bom atirador, bom companheiro, mas às vezes passava dos limites. Chegou a hora de lhe dar um corretivo.
- As minhas ordens é para serem cumpridas e não, questionadas! Sou o comandante dessa tropa e não admito que desrespeitem minhas ordens, tampouco venham a discutir uma decisão minha!
Mosquito estava há pouco tempo no bando, mas tinha em conta que Cotia era um bom comandante, respeitava seus homens, porém, em alguns casos, a insubordinação era punida com a morte. Ele achou melhor baixar a crista.
- Não foi tenção minha procurar refrega, nem peitar o comandante. Nós achamos que...
- Achamos? Quem acha o quê?
Vaqueiro achou melhor intervir. Aproximou-se, tirando o chapéu e batendo a poeira- Estão todos cansados. O senhor mesmo não dorme direito há dois dias. Já estamos longe do perigo e precisamos descansar. Também as montarias que estão com fome e sede.
Cotia olhou para os 23 homens e 8 mulheres que subiam o morro em fila, puxando os cavalos e mulas pelo cabresto. A trilha se alargava em cima do monte e o chefe achou que seria um bom lugar para acampar. Dali podia-se ter uma boa visão ao redor.
As mulheres estenderam suas esteiras junto as rochas para se abrigar do vento. Vaqueiro mandou amarrar os cavalos num pasto mais adiante e destacou três homens para ficarem de vigia.
Cotia confiava em Vaqueiro, seu braço direito. Era função dele zelar pela segurança do bando. O chefe sentou-se numa pedra na beira da ladeira, para apreciar o pôr-do-sol.
-Amanhã seguiremos para Curral Velho-disse ele para Vaqueiro, que voltava da inspeção.
- O Piaui ainda está longe- respondeu o rapaz. Cotia surpreendeu-se.
-Longe? Aquele não é o Morro do Cascudo?
- Não, senhor. É o Morro das Palmas. Nós estamos no município de Jandaia.
O chefe ficou pensativo por um momento. Vaqueiro esperou com paciência por suas reflexões.
-E eu que pensava estar longe das cidades! Então, Jandaia está perto?
- Sim, senhor. Fica depois daquele morro. Conheço bem a região, pois andei muito por essas bandas com meu pai que era mascate.
Olhando para longe, Cotia perguntou:
- Já te falei que tive uma noiva?
- Falou.
Vaqueiro se lembrava. Foi ha dois anos, depois de um assalto a um comboio em Juazeiro. Uma caravana de carroceiros estava indo para a feira carregada de mercadorias e eles resolveram assaltar, por que tinham pouco mantimentos. Mas, numa das carroças tinha soldados da polícia, em vez de farinha e rapadura. Cotia levou um balaço. Quase caiu do cavalo. O bando desistiu do ataque, bateu em retirada e se recolher na serra, para salvar seu chefe. O comandante se salvou por pouco. Felizmente o chumbo varou o ombro sem provocar o falecimento. Depois da ferida tratada com emplastro de babosa, Cotia ficou mais manso, de coração amaciado. Tanto, que falou de seu antigo amor para ele, Vaqueiro, seu amigo íntimo.
Antes de entrar no mundo do crime, Olegário da Rosa, o Cotia, era auxiliar de carpinteiro em Jandaia do Norte. Ele conheceu Dorinha, uma moça simples, bonita e prendada. Começaram a namorar, ficaram noivos meses depois com a promessa de casar no ano seguinte. Vaqueiro não conhecia o resto da história, pois naquela ocasião, o chefe deixou de remoer o passado e encerrou a conversação. Agora ele estava ali, com a mesma cara de abestalhado, olhando para o vazio. Será que vai contar o resto?
Os olhos de Cotia brilharam, quando ele apontou um dedo para longe.
- Ela está bem perto. Logo ali!
Mesmo sem convite ou autorização, Vaqueiro sentou-se ao lado do chefe, pois era amigo íntimo dele, o único escolhido para ouvir suas lamúrias.
-Há dezessete anos saí de Pernambuco, sem bala, sem mala, andei por esse mundo afora. Dei voltas e mais voltas e depois de muitos anos, acabo chegando ao lugar de onde parti, Jandaia do Norte!
O chefe fez uma pausa, como que abrindo as gavetas das lembranças, e continuou- Eu e Dorinha, a gente ia se casar. Um dia ela foi na venda comprar café quando um cabra safado que bebia ali, derreado no balcão, começou a dizer besteiras para ela, como um conquistador de meia tigela. Dorinha reclamou, dizendo que era mulher direita, que estava comprometida. Cheguei na hora quando o homem insistia e reclamei como manda o figurino. O cabra não gostou e me ofendeu em frente da minha noiva. Não pensei em mais nada, peguei um dos pesos da balança e taquei no homem. Ele caiu já morto, com a cabeça quebrada. Me assustei com o próprio ato insano. Dorinha ficou apavorada com a sangueira do sujeito. Alguém saiu correndo pra chamar a polícia e eu não esperei pra dar explicação, não adiantaria, eu havia matado um homem! Fugi por que não suportaria ficar preso no xilindró, como passarinho preso numa gaiola. Saí de Jandaia e nunca mais voltei. Me escondi na Bahia e acabei entrando no bando do Jacaré e quando ele morreu, tomei o lugar dele.
Cotia abriu as mãos, olhando ao longe.
- Agora estou aqui! Perto de Jandaia. Será que Dorinha ainda mora ali?
A pergunta não foi para vaqueiro, mas mesmo assim, ele torceu a boca e levantou os ombros, em sinal de dúvida. Cotia ponderou:
- Ela deve ter se casado, era moça bonita! Sei que gostava de mim, mas acho que não iria me esperar todos esses anos, além do mais, me tornei um assassino!
Cotia fez outra pausa, refletindo. Por fim, disse- Amanhã vou a Jandaia, espiar a cidade.
Vaqueiro não se surpreendeu- Sozinho?
- Vou usar um disfarce. Com essa barba e um manto por cima dos lombos ninguém vai me reconhecer. Já se passaram muitos anos. Acho que ninguém mais se lembra de Olegário da Rosa, ajudante de marceneiro.
- O senhor não tem parentes lá?
- Não.
- É um pouco arriscado. Quem sabe vou junto?
- Não! Não quero ninguém na minha cola! Vocês ficam mais perto da cidade, esperando por mim. Diga aos outros que vamos atacar Jandaia amanhã e que eu vou lá antes, para ver quanto tem de polícia.
Cotia despiu o gibão de couro, tirou o chapéu e as armas. Vaqueiro entregou a ele a roupa e ajudou-o a vestir, enfiando pela cabeça.
- Mas, isso é coisa de mulher!-reclamou o chefe.
-É ropa de homi santo-disse Nenêm, a esposa de Vaqueiro, amarrando o cordão na cintura dele.
Acocorado diante dos outros que assistiam os preparos, Zarolho explicou:- É batina, vestimenta de padre.
Mosquito retrucou:- Batina é preta e essa é marrom. Acho que é ropa do mosteiro, que estava junto das outras que eu roubei do mascate.
Caroço, o mais jovem do bando, sentado ao lado de Zarolho, corrigiu:- O nome é hábito.
Zarolho deu-lhe um cutucão com o cotovelo:- Até parece que sabe!
- Nem uma coisa, nem outra-afirmou o chefe- Isso é ropa de esmolambado, pobre coitado sem eira nem beira!
Ele puxou o capuz sobre a cabeça. Vaqueiro deu-lhe um cajado, que ele mesmo fez com um galho de goiabeira.
- Pra quê isso?-perguntou Cotia.
-Todo andarilho usa cajado. O senhor vai parecer Moisés, ressuscitando do deserto.
- Quem é esse jagunço?
- O senhor nunca leu a bíblia?
- Ah! Sim, é o santo das pragas!Bom, pessoal, eu espero não demorar. Vou ver se tem muita policia por lá, para podermos atacar sem perigo e sair sem arranhão. Vocês esperam aqui e obedeçam as ordens de Vaqueiro.
Cotia entrou na cidade, observando tudo, as casas de comércio e moradias. A cidade não mudou muito naqueles anos que já se passaram, desde que dali fugiu.
A casa de Dorinha ficava mais além, nos limites do povoado.
Seguindo adiante, passou em frente da delegacia. Estava com a porta fechada, e janela aberta. Nenhum soldado à vista, deviam estar lá dentro, jogando cartas. A delegacia era pequena, com uma sala gradeada que servia de cela, quase sempre vazia, pois era raro acontecer um crime na cidade, além do mais, os criminosos eram logo levados para a capital.
Cotia seguiu caminhando sem pressa, acompanhando cada passo com seu bordão apoiado no chão. Estava distraído, já traçando um plano para o ataque, quando soou uma voz atrás dele.
-Ei! O senhor aí! Pare!
Cotia gelou. Pensou que tinha sido descoberto e imaginou um exército de soldados atrás dele.Parou e olhou para trás.
- Padre! Precisamos da sua ajuda-disse o soldado aflito, aproximando-se apressado. O homem pensava que ele era um padre! Talvez isso ajudasse na sua investigação, ou talvez o contrário. Vestindo o seu tradicional uniforme caqui, o soldado estacou, esbaforido, diante dele- Tem um homem que está morrendo e precisa da extrema-unção.
- Eu não sou padre. Sou frei.
- Não tem importância, o senhor só precisa dizer a palavras.
Palavras? Que palavras?
- A cidade não tem padre? Peça a ele.
- Ele foi a um batizado na fazenda do coronel Domingos e não vai dar tempo de ir lá buscar o homem. Vamos frei, antes que seja tarde e o delegado morra sem o perdão de Deus! Vai virar uma alma penada, zanzando lá na delegacia!
- O delegado está morrendo?
- De morte morrida, como sempre quis. Pegou uma moléstia danada e não há remédio que lhe cure!
Cotia deixou-se levar. O homem conduziu-o para a casinha ao lado da delegacia. No quarto estava o delegado deitado na cama, rodeado por três soldados, a esposa e dois filhos adultos.
A mulher inclinou-se e disse para o moribundo:- Ariovaldo, Josenildo trouxe o padre. Vai ficar tudo bem agora.
Com lágrimas nos olhos, ela ergueu-se e se afastou. Cotia sussurrou para Josenildo-É melhor eu ficar sozinho com ele.
O soldado assentiu e convidou todos a saírem. Cotia baixou o capuz e sentou-se na cadeira, olhando para o enfermo. Só então, reconheceu-o. Era Ariovaldo, o dono do armazém onde ele havia matado o galanteador. Naquele dia foi o próprio Ariovaldo que saiu correndo para chamar a polícia. Agora ele era delegado de polícia.
O enfermo ergueu mão e com a vista turva, falou numa voz sumida- -Padre, Deus vai perdoar meus pecados?
Cotia sabia muito bem quais eram os pecados daquele homem. Além de roubar no peso das mercadorias que vendia, fornicava com a cunhada, esposa do próprio irmão. Agora estava ali, as portas da morte, com medo de ir para o inferno. E a esposa triste, sem saber das traições do marido, pedia nas rezas a salvação dele. Cotia inclinou-se para frente, perguntando:- Ariovaldo, estas arrependido de teus pecados?
-Estou arrependido e peço perdão!-respondeu com voz fraquinha, fraquinha.
Cotia inclinou-se mais e sussurrou no ouvido dele- Mas, vais queimar nos caldeirões do inferno, por que eu não sou padre e não tenho autoridade para pedir por ti, pela salvação da tua alma. Ouviste? Não sou padre.
O moribundo estremeceu, os lábios roxos tremeram. Ele tentou falar alguma coisa, mas se engasgou. Cotia ergueu-se, deixou o quarto e rumou para a saída. Sem se deter, disse- A alma está salva, mas pelo corpo nada posso fazer. Do pó viemos e a ao pó voltamos.
Ele saiu rápido da casa. Estava já na rua, quando Josenildo correu para alcança-lo- Frei! Tome, dona Elvira mandou-lhe um ajutório.
Josenildo estendeu a mão com alguns réis. Cotia pegou as moedas, meteu no bolso e seguiu pela rua. Dobrou na esquina, caminhou duas quadras, dobrou novamente e focou a atenção numa casinha pintada de amarelo, com um pequeno jardim na frente, cheio de flores. A porta estava fechada, mas a janela não. Ali morava Dorinha Viana, a mulher com quem ele iria se casar. Será que ela ainda mora aqui?
Olegário sentia-se emocionado, só de olhar a casa. Recordou que esteve ali muitas vezes, sentado num banco na varanda com ela. Conversando e fazendo planos para o casamento. Mas, o Destino mudou tudo quando um homem bêbado cruzou seu caminho. Se não tivesse fugido após matá-lo, talvez ainda estivesse no presídio na capital. Ou talvez tivesse morrido como um passarinho privado da liberdade.
Cotia continuou caminhando, olhando disfarçadamente para a casa. A sua vontade era bater na porta e pedir um copo de água, só para vê-la. Ela não iria reconhece-lo com aquela barba e aquele traje. Com certeza ela casou e não ficaria bem ele aparecer agora. Mudou de ideia, fez a volta, retornando para o morro. Deu ordens para o bando tomar a cidade.
- Mas, não quero que matem ninguém. Estão ouvindo? Sem um tiro. Não quero matar gente inocente. Só tem meia duzia de soldados. Façam reféns, mas não os machuquem pois tenho gente conhecida naquela cidade.
Os soldados não tiveram chances de reagir. Estavam todos juntos, no velório do delegado. Foi o primeiro lugar que os cangaceiro entraram e sem ruido, dominaram todos. Foram trancados na cadeia. Por ordem do chefe, Josenildo foi levado até ele. Cotia estava sentado nos degraus da porta da delegacia, junto com Vaqueiro.
- Deixem ele aqui. Preciso interrogar o cabra.-disse Cotia para Mosquito e Zarolho.- Agora vão cumprir as ordens de Vaqueiro. Quando os dois se fastaram com Vaqueiro, Cotia perguntou para o prisioneiro- Você fazia o quê, antes de ser soldado?
- Trabalhava como ajudante de guarda-livros.
- Conhece o coronel Dionísio Viana?
- Conheci, era fazendeiro. Homem valente! Agarrava touro à unha! Morreu faz dois nos. Um touro chifrou ele na barriga.
Cotia permaneceu calado, pensativo. Josenildo olhou para ele com mais atenção- Parece que já vi o senhor antes!
- Mas, claro! Eu estava vestido de frei hoje de manhã...
- Isso, o frade! Mas, então o delegado morreu sem receber a purificação!
- Vamos mudar de assunto. Me responda, a filha do coronel casou?
- Que coronel? Ah! O coronel Viana? Sim, a Dorinha se casou com o Chico, filho do coronel Fagundes. O homem morreu do coração, faz dois anos
Cotia ficou calado, remoendo as ideias. Enquanto isso, Josenildo pensou até em fugir, mesmo com as mãos amarradas. Mas, havia cangaceiros em cada canto da cidade. Não iria muito longe. Poderia até, ser baleado. Precisava ter paciência. Talvez os bandidos fossem embora logo depois do saque. Mas, o chefe deles, sentado ali na escada, parecia não estar com pressa.
- O que tem naquele cofre que está na delegacia?
- O cofre? O que tem dentro?
- Tu é surdo ou estou falando grego?
- O que tem lá são documentos- respondeu o rapaz, hesitante.
- Então são documento valiosos!
Josenildo atrapalhou-se tentando consertar o erro- Não! Não sei, o que tem lá, não.
Cotia fez um sinal para Mosquito e Barbicha.
- Esse cabra não quer falar a verdade, amarra ele num poste e taca bala nele!
Josenildo agitou-se, assustado, foi logo cuspindo as palavras- Não! Eu falo! Eu falo!
- Diga logo!
- É da prefeitura. Mas, eu não sei o que tem. O prefeito pediu para guardar na delegacia que é mais seguro.
Cotia ergueu-se, coçou a barba do queixo e começou a dar ordens- Vaqueiro, vai na prefeitura e traga o homem. Barbicha, leve esse magrela pra cadeia junto com os outros soldados e depois vê se tem café na cozinha, se não tiver manda Sinhá passar café e fazer bolinho de milho que'u estou com fome. Onde fica o barbeiro?
Josenildo não percebeu que a pergunta era para ele. Vaqueiro cutucou-o com a coronha da carabina.
-Ai! Ah! Fica logo adiante, na segunda quadra, a esquerda.
Quando o chefe dos cangaceiros retornou, todos olharam para ele com admiração, mas, ninguém fez comentário, pois o chefe não gostava de adulamento. Cotia tinha raspado a barba, estava com a cara lisinha e cheirando à loção de losna. Na escada estava sentado um homem de camisa branca e calça de linho, cinzenta. Ele levantou-se, encarando Cotia. Como autoridade, precisava permanecer ereto e firme.
- É o senhor prefeito? Como se chama?
- Mariano da Borba Canto.
Cotia pegou o homem pelo braço e levou-o para dentro da delegacia. Vaqueiro, Mosquito e Zarolho também entraram.
Cotia apontou para o cofre- Abra esse cofre.
-Não posso abrir-foi a resposta.
- Porque?
Mariano fez um gesto vago, respondendo num tom simplório- Esqueci a combinação. O cofre está vazio, não usamos mais. O dinheiro que tinha aí foi depositado no banco na capital.
Cotia voltou a levar o homem para fora. Olhou para Vaqueiro e perguntou:- Tem gente na igreja?
Mas, foi Zarolho quem respondeu- Umas dez pessoas. Marabá trancou eles lá dentro, junto com o padre.
- Corre lá e manda soltar um homem. Daqui, Mosquito atira e mata ele com o rifle de precisão. E se o prefeito não falar, manda soltar outro, e outro até que ele resolva abrir o cofre. Enquanto isso, vou fazer uma visita.
Zarolho saiu correndo para a igreja, Mosquito espichou-se na calçada, apoiou os cotovelos no chão a apontou o rifle para a porta da igreja. Vaqueiro sacou a pistola luger da cintura e apontou para o prefeito.
Barbicha surgiu na porta da delegacia- Capitão, o café está pronto!
-Deixa na chapa quente que já volto.
Dois cangaceiros estavam montando guarda na rua para impedir que o moradores saíssem de suas casas. Cotia passou por eles. Eram Caroço e Cebola.
- Logo, logo nós vamos embora. Só vamos pegar o dinheiro da prefeitura. Eu vou ali fazer uma visita a um conhecido.
Um disparo ecoou no centro da cidade.
-Algum problema, capitão?-indagou caroço, preocupado.
- É só uma questão de diálogo. Fiquem firmes até alguém vir buscar vocês.
Cotia seguiu adiante. Entrou no jardim da casa, deixou o rifle num canto da varanda, tirou o chapéu e bateu na porta. Esta, se abriu, surgindo uma mulher gorducha, com um lenço na cabeça. Olhou assustada para o homem a sua frente, a arma na cintura, as duas cartucheiras atravessadas no peito.
- Não tenha medo que não vou lhes fazer mal. -garantiu o cangaceiro
-Dorinha Viana mora nesta casa?
- Sim, senhor, mas ela está doente, acamada. Estou cuidando dela.
-Qual é a sua graça?
-Ernestina Pião às suas ordens. Moro aqui do lado.
-Dona Ernestina, o que Dorinha tem?
- O médico receitou uma carrada de remédios e não adianta! Está com muita febre.
- Ela está com o marido?
-Não, ele já morreu, faz algum tempo.
- Posso conversar com ela? Eu vim de muito longe. Sou um amigo de longa data.
Cotia não esperou a reposta e foi entrando. No corredor entrou na primeira porta. Dorinha estava deitada no leito. O rosto pálido, ainda conservava a beleza de outrora, mas estava abatida pela enfermidade. Cotia se aproximou e sentou-se na cadeira ao lado da cama. Ele tocou de leve o rosto de Dorinha. Só então, ela abriu os olhos. Não demonstrou tê-lo reconhecido.
- Como está se sentindo?
Nem a voz ela reconheceu. Sua expressão era neutra, como se conversasse com uma visita qualquer.
- Me sinto fraca, com arrepios de frio e dor de cabeça.
- Você não está me reconhecendo? Sou Olegário da Rosa. Lembra que a gente ia casar? Já se passaram dezessete anos!
A expressão do rosto de Dorinha mudou. Esboçou um sorriso.
- Olegário! Há quanto tempo!
Logo a alegria despareceu- Você não apareceu mais!
- Ando fugindo desde o dia em que matei aquele homem. Eu não queria ser preso, por isso fugi. Não te procurei mais por que me tornei um assassino.
Dorinha tocou a mão dele, fazendo-o calar-se.
-Foi bom você ter chegado. Eu quero que você me leve ao lugar onde nos beijamos pela primeira vez.
Olegário ficou indeciso.
- Eu vou morrer-disse ela- Me leve para lá, nas sombras dos buritis.
Ele ergueu-a com delicadeza e carregou-a para fora. Saindo pela porta dos fundos, seguiu por uma trilha ao lado do galinheiro. Logo chegou aos buritis. Sentou-se num banco de madeira com Dorinha ao colo. Ela soltou um suspiro. Olhou para a paisagem no vale distante.
- Eu me casei grávida-disse ela num fio de voz- Meu marido sabia, eu contei a ele que o filho que eu esperava era de você, Olegário. Eu ia te contar naquele dia que eu estava esperando um filho teu. É um menino. Coloquei o teu nome. Olegário Filho.
Dorinha fez uma pausa, olhando para o homem que foi seu noivo há 17 anos.
- Um filho? Eu tenho um filho?
- Ta com dezessete anos.
- E onde está ele? Quero conhecer o cabra da peste!
A voz de Dorinha sumia.
- Ele foi na igreja rezar pra eu melhorar...
Olegário sentiu uma fisgada no peito. Na igreja? Dorinha deixou o braço pender, virou o rosto para o lado. Olegário encostou o dorso da mão na face dela. Estava fria, sem vida. Ele ergueu-se enquanto outro tiro ecoou distante. Estremeceu. Levou o corpo de Dorinha para casa e colocou-a na cama.
-Eu já volto-disse ele para Ernestina. Saiu apressado da casa. Enquanto corria, lágrimas brotaram de seus olhos, caindo das faces sumiam na poeira do chão. Uma dor súbita no peito deixou-o tonto, vacilou entre duas passadas. A vista nublou, os ouvidos zuniram e o coração corcoveou como um cavalo xucro.
Cotia abriu a boca sorvendo o ar que lhe faltava. As pernas fraquejaram e ele caiu duro como pedra. Ainda conseguiu espichar o braço e articular um nome.
-Olegário, meu filho!
Perto da igreja soou mais um disparo.
ANTONIO STEGUES BATISTA
Enviado por ANTONIO STEGUES BATISTA em 27/01/2016
Reeditado em 29/01/2016
Código do texto: T5525450
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